Entrevista com Gerson D´Addio


O professor fala do trabalho com deficentes físicos e expressa sua opinião sobre os rumos do Yoga hoje

Exigente, dedicado, profundo conhecedor do corpo humano, assim é o professor Gerson D´Addio da Silva, colaborador da Prana Yoga Journal. Nesta entrevista, ele fala sobre sua formação, a importância do estudo e os trabalhos sociais que desenvolve.

EYoga: Você é formado em educação física. Como o Yoga entrou na sua vida? Foi na faculdade? Como despertou o interesse pela prática?

Na faculdade conheci o Marcos Rojo, que foi dar uma aula para os alunos da graduação em 1989. Depois deste primeiro contato com o Yoga comecei a praticar em 1991 interessado nos aspectos corporais. Depois fui descobrindo que o sistema tinha um propósito que transcendia o meramente "físico", sem, contudo excluí-lo.

Eyoga: Além de educador físico e professor de Yoga, você também é massoterapeuta formado em Pequim e também tem cursos em outras técnicas corporais. Conte-nos como foi sua trajetória até chegar nos dias atuais. O interesse pela massagem foi antes ou depois do Yoga?

Também em 1991 comecei a estagiar em duas instituições com Educação Física adaptada para deficientes físicos e mentais. Lá me dei conta do quão limitadas podem ser as abordagens corporais mais ortodoxas e senti necessidade de me aprofundar em várias linhas de trabalho corporal consciente, dentre as quais a massagem oriental foi uma das que mais me atraiu até por uma contingência profissional, pois em 1992 já dava aulas na AMOR (Associação de Massagem Oriental do Brasil). Durante muitos anos trabalhei com massagem, educação física e Yoga, viajando ao Oriente em 1994 e 1998 para aperfeiçoamento na Índia, na China e na Tailândia, porém a demanda com o Yoga foi se tornando tamanha, bem como o meu gosto por esta abordagem, que aos poucos fui restringindo minha atuação profissional apenas a esta área, sendo que hoje não dou mais aulas de Educação Física, faço massagens esporadicamente e dedico-me integralmente ao Yoga, porém com a plena noção de que as várias técnicas corporais que conheci deixaram-me uma grande contribuição para trabalhar com o Yoga de modo mais seguro e melhor embasado.

Eyoga: Você tem formação em Yoga no Instituto Kaivalyadhrama, na Índia, um dos mais tradicionais centros de estudo em Yoga. O que você acha das outras linhas modernas de Yoga? E por que acha que fazem tanto sucesso no Ocidente?

Kaivalyadhama é um centro tradicional, que defende cuidados importantes para não descaracterizarmos o Yoga, porém não se trata de uma instituição fossilizada, muito antes pelo contrário, é o pioneiro e um dos mais ativos centros de investigação científica de Yoga em todo o mundo. Com os dados destas investigações, podemos aperfeiçoar as técnicas, selecioná-las melhor, ordená-las corretamente e compreendê-las fisiologicamente, até para sentirmo-nos mais seguros nos momentos em que precisamos embasar adaptações. Esta perspectiva de aliar ciência e tradição me atraiu muito e vejo com certa desconfiança alguns setores do movimento contemporâneo tão difundido no ocidente que parece dar mais ênfase às novidades e à comercialização do Yoga, mesmo quando não há embasamento científico nem o amparo dos textos antigos, e aqui falo principalmente de abordagens que podem confundir o público, levando-o a concepções equivocadas sobre o Yoga, tal como o "Hot Nacked Yoga", o "Hip Hop Yoga", etc. Claro que nem todas as abordagens recentes se enquadram neste panorama. Há muitas abordagens renovadas que trazem preciosas contribuições. Eu mesmo admiro muito mestres como Iyengar, Shivananda, Ramakrishna e Yogananda, mas só me pergunto por que o ocidente ignora mestres como Kuvalayananda e Gharote.

Eyoga: Você se interessa ou já fez cursos de outras linhas de Yoga? Se sim, o que achou? Se não, por quê?

Cursos de formação ou aprofundamento eu nunca fiz, mas fiz várias vivências de outras linhas. Não me identifiquei com algumas delas, que prefiro não mencionar, até porque as respeito como opções àqueles que tem necessidades diferentes das minhas. Apenas percebo que meu interesse pelas práticas depende da observância de alguns fundamentos que julgo essenciais aos propósitos do Yoga e que presumo serem norteadores das práticas. Portanto, não tenho interesse por práticas que dinamizam as técnicas tal como uma ginástica, que não contemplam os conceitos de Sukham (conforto) e sthira (estabilidade) ou que centram atenção mais no aspecto externo das posturas do que na vivência interna das mesmas. Ainda assim, a única linha que de fato olho com desconfiança, não pelas características das práticas, que são sempre válidas, mas sim pela fundamentação teórica que se divulga, é a Swásthya. Creio que a desinformação com que é veiculada incorre em impropriedades, tais como a difamação não fundamentada das demais linhas (ex: Hatha), a auto-rotulação também não fundamentada como sistema pré-clássico e melhor Yoga do mundo, e por aí vai. Mesmo que esta minha opinião desperte severas críticas, não há como deixar de expressá-la, pois acho que muitas vezes o público tem sido enganado, e temos uma responsabilidade em esclarecê-lo, lembrando que o Yoga preconiza a Paz, mas não a passividade.

Eyoga: Você conhece muito bem anatomia e fisiologia, uma área extremamente técnica que causa muitas dúvidas. É fundamental para um professor de Yoga tem um conhecimento profundo nesta área? Os cursos de formação em Yoga atuais dão esta formação profunda?

O Yoga foi por muito tempo uma ciência tradicional, baseada no experimentalismo, porém não de modo objetivo e racional como o é a ciência clássica. Hoje, porém, o Yoga se tornou um foco de convergências interdisciplinares, e pode ser estudado à luz da física, da biomecânica, da anatomia e fisiologia, da fisiopatologia, da biologia molecular, da educação, das ciências sociais, da investigação literária e filosófica, etc. Neste sentido, acho que muitos são os conhecimentos que podem acrescentar ao profissional de Yoga maior competência na condução de suas aulas. Dentre estas áreas, reputo a anatomia e a fisiologia como importantíssimas, pois um maior conhecimento das mesmas pode não só aumentar a compreensão que se tem das técnicas, como também pode tornar a atuação de um profissional mais segura e eficaz, refletindo-se em benefícios para os alunos. Creio que os cursos de formação em Yoga têm pouco tempo disponível para o aprofundamento nestas áreas, basta lembrar que um estudante de medicina, por exemplo, tem uma carga horária só de fisiologia maior do que a carga horária total de muitos cursos de formação em Yoga.

Eyoga: Você trabalha ou já trabalhou com pessoas com alguma deficiência, idosos, obesos. Por que o interesse de trabalhar com esses grupos de pessoas?

Acho que, quanto maiores as limitações ou dificuldades de uma pessoa, tanto mais ela tem a ganhar com o Yoga, e quantos mais vemos os progressos, mais gratificante se torna nosso trabalho. Além disso, vejo que muitos sequer procuram o Yoga por terem a pré-concepção de que não são aptos para a prática, sendo isto reforçado pela tendência pragmática e competitiva da nossa cultura que nos induz a vincular a qualidade de uma prática ao que se faz ou, pior ainda, ao quanto se faz. Gosto de ajudá-los a perceber que ainda mais importante é o "como se faz", e que, se eles sentirem bem-estar e serenidade ao final de uma prática, podendo trabalhar com consciência e logrando benefícios, por que não fazê-la, mesmo que externamente pareçam estar fazendo muito pouco? Já publiquei um trabalho científico na Índia sobre Yoga com deficientes físicos evidenciando benefícios que não podem ser ignorados e gostaria de ver esta mensagem se difundindo, pois quem mais precisa do Yoga continua sendo normalmente excluído.

Eyoga: Conte-nos um pouco do trabalho desenvolvido com eles e os progressos.

Minhas experiências com Yoga e deficiência física foram muito interessantes. Após 8 anos como educador físico na AACD, introduzi o Yoga lá. Durou pouco tempo, pois deixei a instituição dois anos depois, em 2000. Em 2004 sofri um sério acidente e tive fraturas múltiplas no quadril, sacro e lombar, além de perfuração na bexiga e músculos dilacerados. Demorei mais de meio ano para voltar a andar, mas esta foi a experiência mais rica da minha vida. Aprendi a fazer Yoga na cama, na cadeira de rodas e com o auxílio de muletas. Não deixei de praticar um dia sequer e aprendi muitas estratégias que pude reaplicar nos deficientes quando retomei este trabalho em 2006 no GRHAU. Desenvolvi estratégias na cadeira, no chão, no tablado com apoio da parede, com recursos ativos e passivos. Notei que os alunos tinham redução de espasticidade, maior consciência corporal e capacidade de mobilizar seus potenciais preservados, melhora do quadro respiratório, da força e da flexibilidade, mesmo em segmentos paralisados. Com um pequeno grupo, decidi avaliar isto com métodos padronizados, comprovando os bons efeitos. Desenvolvi também um projeto de Yoga para jovens com síndrome de Down em 1996 e 1997 numa instituição chamada ADID, e também estes jovens tiveram uma resposta muito boa à prática, ganhando motivação quando convidados a apresentar nosso trabalho no Congresso Nacional da especialidade em 2007 em Brasília, o que me rendeu enfim uma participação no Congresso Mundial no mesmo ano em Madri. Com relação aos idosos, dou aulas num grupo de terceira idade no Hospital Santa Cruz, e eles mesmos sempre pedem mais aulas, alegam sentir-se muito bem e pude também avaliar isto nos últimos 3 anos. Desenvolvi também um projeto no Hospital das Clinicas da faculdade de Medicina da USP, com fibromiálgicas, trabalhando com uma abordagem de Yoga relaxante, onde a ênfase sempre recaia no relaxamento do esforço em cada postura e o resultado disto na redução dos sintomas da fibromialgia foi expressivo e resultou no primeiro trabalho científico sobre Yoga na Fibromialgia publicado em todo o mundo (no Journal of Alternative and Complementary Medicine, dec. 2007). Além disto, pela minha abertura em relação a todas estas pessoas, mesmo nos grupos heterogêneos com quem trabalho, sempre recebi muitos alunos com todas as características: gestantes, idosos, mas também jovens bonitos, saudáveis e sem preconceitos. Aí é que está a beleza da coisa, nesta integração.

Eyoga: Você acha que a popularidade do Yoga é algo positivo? Qual é a recomendação para quem deseja tornar-se um professor de Yoga?

A popularização do Yoga é positiva, pois hoje quase todos têm acesso a informações esclarecedoras em relação a tão maravilhoso sistema, porém, há sempre um aspecto que requer cuidado, pois a difusão do Yoga vem acompanhada de muita desinformação. Outro dia eu fazia palavras cruzadas e não sabia o que preencher num espaço de quatro letras intitulado "tipo de ginástica respiratória"; depois me dei conta de que o termo era "ioga"; então me perguntei mesmo que fosse ginástica, é apenas uma intervenção respiratória?.Mesmo que se tratasse somente de pranayamas, podemos chamar a isto de ginástica? Se a desinformação ficasse só nas palavras cruzadas seria uma grande coisa, mas o problema é que ela está até mesmo em veículos de comunicação especializados e na boca de profissionais consagrados. Por isso, o conselho que dou é que o público tenha um bom filtro, principalmente ao navegar na Internet, procurando sites credenciados a organizações confiáveis, buscando fontes de estudos científicos e literário-filosóficos consagrados.

Eyoga: Quem são seus mestres e seus livros preferidos?

Acho que nunca escolhemos uma linhagem por acaso. Depois de vários anos seguindo a orientação da escola de Lonavla, me dei conta de que estou ao lado de profissionais como o Marcos Rojo e o Shotaro Shimada, a Alícia Souto e o ShriKrishna, o Danilo Forghieri e o Manmath Gharote, a Maria Celeste e a Dayse Rodrigues, seguindo o norte que nos fora dado por Bhole, Manohar Gharote, Digambarji, Kuvalayananda e Madhavadas. Seguir os passos desta "turma" requer muita responsabilidade e tenho até receio de não honrar a linhagem que escolhi e cuja obra deixada para a posteridade nos impulsiona a também deixar algo de produtivo. Minha admiração, contudo, não se resume a estes "mestres" da linhagem que escolhi: no Brasil admiro profissionais como o Hermógenes e a Sonia Sumar, dentre os indianos de outras escolas, admiro Shivananda, Iyengar e Yogananda, isto apenas para citar alguns nomes.

Quanto aos livros, acho que profissionais e estudantes de Yoga dão pouca ênfase ao estudo sério e aprofundado dos tratados tradicionais. Sem dúvidas, considero os Sutras de Patanjali, a Bhagavad Gita e as Upanishads indispensáveis aos estudiosos do Yoga. Também gosto muito do Gheranda Samhita, pela abordagem ampla no aspecto técnico. Dentre os livros contemporâneos, recomendo como os "melhores" que já li: A Tradição do Yoga, (George Feuerstain), Yoga, Imortalidade e Liberdade (Mircea Eliade), O Yoga (Tara Michael), Pranayama (Swami Kuvalayananda) e Encyclopaedia of Traditional Asanas (Gharote e col). Dentre os autores nacionais, a obra de Hermógenes é sem dúvida a mais vasta e admirável.

Eyoga: Quais aspectos filosóficos do Yoga que mais se identifica e consegue colocar na prática?

Sempre temos dificuldades para colocar em prática os vários princípios inerentes ao Yoga. Sou apegado ao meu filho, às vezes perco a paciência no trânsito e adoro um chocolate, mas tentamos viver o Yoga, mais do que apenas praticar algumas técnicas e se hoje ainda tenho muitos defeitos, pelo menos sei que já melhorei em muitos aspectos que questionei em mim mesmo no passado: embora eu seja ovolactovegetariano, plante árvores pelo meu bairro, cuide de cachorros abandonados e atropelados, nunca tenha batido no meu filho e tenha uma relação de absoluta sinceridade com todos, não vejo estas condutas como tendo um valor apenas em si mesmo, porém há um valor em todo o processo de conscientização pelo qual passei até chegar a elas. Ainda olho adiante e vejo muita coisa por fazer; por exemplo, tenho o sonho de educar crianças carentes através do Yoga, e talvez haja hoje alguém que esteja cumprindo este papel, mesmo sem ser vegetariano ou pacifista... e por que esta pessoa estaria num grau de conscientização inferior ao meu? Será que não houve apenas uma diferença nas prioridades e possibilidades que se abriram de cada lado? De qualquer modo, não podemos perder de vista os exemplos de personalidades como Gandhi, Madre Tereza e Franciso de Assis ou mesmo de brasileiros como Irmã Dulce, Betinho e Chico Xavier, pois o dia em que nossas condutas buscarem ser ao menos um pálido reflexo destes exemplos, viveremos num lugar abençoado.

Gerson D´Addio dá cursos de formação na Humaniversidade e faz parte da equipe da Uni FMU, UNILUZ, Espaço Dhyana de Goiânia, e o recém-lançado IEPY, coordenado pelo Marcos Rojo. Para entrar em contato com ele, escreva para ge..daddio@ig.com.br. Para comentar esta matéria, escreva para eyoga@esferabr.com.br

Fonte: www.yogajournal.com.br

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