Sem medo de ser feliz


Não há dúvida: as posturas de extensão (backbends) trazem muitas emoções à tona. Abrace-as e evolua na prática e na vida.



Sequência de asanas: Patricia Walden 
Fotos: Chris Andre

Uma questão: pessoas que são flexíveis, com abertura para estender o corpo “para trás”, nascem assim ou podem cons­truir essa habilidade?

Existem, claro, praticantes que nascem com facilidade para backben­ds. Eles caem para trás facilmente em urdhva danurasana (postura do arco elevado) como um aquecimento e hipnotizam todos ao fazer posturas que a maioria apenas sonha: rajakapotasana (postura completa do pombo real) ou natarajasana (postura do senhor da dança). Esse tipo de asana é geralmente referido como “abridor de coração”.

Mas são raros os yogis com essa facilidade. A maioria de nós (talvez você? Eu, com certeza!) tem uma relação mais carregada com as exten­sões, tendo que trabalhar lenta e cuidadosamente a extensão da coluna, lidando com desconforto, inflexibilidade e desequilíbrio. Nós lutamos não apenas com alinhamentos básicos e limitações físicas, mas também com nossas mentes julgadoras e egos apegados.

Por exigirem tanto esforço físico e mental, muitas posturas de grupo trazem muita “coisa” à tona, esfregando várias questões na nossa cara. É preciso ter atenção no processo todo. Para Patricia Walden, professora ‘advanced senior’ de Iyengar, cujos backbends são famosos no mundo do Yoga, as extensões são a oportunidade definitiva para expe­rimentar o Yoga em sua mais completa expressão – como uma prática que trabalha corpo, mente e espírito em medidas quase iguais.


Tentativa e erro
No Yoga clássico de Patañjali, o tipo de sofrimento existen­cial que experimentamos em extensões corre por nossas vidas e tem raízes nos kleshas, ou “aflições mentais”. Os kleshas nas­cem da nossa tendência a não enxergar a nossa verdadeira na­tureza, e a natureza do mundo ao nosso redor. Existem cinco kleshas, conforme explicado no Yoga Sutra: avidya (ignorância), asmita (identificação com o ego), raga (apego),dvesha (aver­são) e abhinivesha (medo, especialmente da morte). Avidya é o klesha-raiz; os outros quatro são suas ramificações.

“Grosso modo, os kleshas são coisas que obscurecem o cora­ção. São a causa de todo o sofrimento humano”, diz Walden, autora da obra O livro de Yoga e saúde para a mulher (ed. Pensa­mento). Ela explica que os kleshas são sentidos no peito, e tal­vez por isso uma prática de extensão de coluna que abre o pei­to seja a melhor maneira de entrar em contato e observá-los. “Em todos esses anos trabalhando com pessoas com ansieda­de e depressão, aprendi que essas emoções são sentidas como restrições ou aperto em volta do coração ou do diafragma.”

É um presente do Yoga (embora às vezes pareça uma mal­dição) que posturas nos permitam usar o corpo para brilhar à luz da consciência em nosso pensamento falho e estados emocionais negativos. Pode doer, assim como o crescimen­to interno dói. Mas podemos abraçar os kleshas por meio dos backbends, praticando-os com sinceridade e intenção.
E mesmo se você estiver em uma fase totalmente escrava dos kleshas – cansado, triste, estressado e ansioso –, conside­re a prática como uma saída. “Eu mesma posso dizer que os backbends nunca curaram minha depressão, mas me ajuda­ram a atravessar as nuvens negras de emoção”, diz. Walden desenvolveu esta série para trazer certa clareza a praticantes de todos os níveis.


Avidya - o klesha-raiz
Como muita coisa em Yoga, os kleshas não são simples ou lineares. A maioria dos professores concorda que avidya é o klesha-fonte, o que está por trás e alimenta todos os outros. Walden gosta de traduzir avidya como “ignorância espiri­tual”. Richard Rosen, diretor do Piedmont Yoga Studio, na Califórnia, e editor-colaborador da Yoga Journal americana, faz uma abordagem mais pop. “É autoidentificação errada; você identifica-se com o pequeno eu em vez de com o Eu universal com letra maiúscula. Você pensa que é o Clark Kent, mas na verdade é o Super-Homem.”

Para chegar a esse conhecimento, idealmente repousarí­amos na sabedoria, abrindo facilmente para a verdade uni­versal. Mas sentimentos de individualidade, nosso avidya, causam tensão no corpo. “Ombros encolhidos são sinal do estado de avidya, assim como respiração curta – ambos im­pedimentos para fazerbackbends.”

Walden oferece um backbend com apoio para “persuadir” o corpo na prática, oferecendo um lugar seguro para se abrir para o processo de autoexploração. Desse lugar estável, você pode permitir que seus pensamentos flutuantes (os vrittis) se acalmem e você se veja mais claramente. Deixe seu medo, aversão, ego e apego – os outros kleshas – surgirem e sumirem.



Asmita - quem é você?
Ah, o ego – você não pode viver sem ele, e não pode viver com ele. Amita é um klesha, outro aspecto deavidya. Você se vê como separado do todo, e pensa que a forma de sua pos­tura importa, e que ela revela sua proeza. Você pensa que é tudo sobre você. De certo modo, “o ego não é de todo mau”, segundo o professor de Tantra Douglas Brook. “Ele nos dá personalidade, é o que nos diz para não tocar no fogo.” Pre­cisamos do ego. Mas nos perdemos se focamos no narcisis mo e na ilusão de controle em vez de nos rendermos ao que Brooks chama de “apoio universal”.

Praticar urdhva mukha svanasana (postura do cachorro olhando para cima) possibilita que você trabalhe com o as­mita de maneira positiva – ao conectar força de vontade sufi­ciente para criar um sentido de segurança enquanto oferece uma chance clara de deixar a terra apoiá-lo, de a respiração elevá-lo e de a gravidade fazer a sua parte. Nessa postura, você pode reconhecer todas as falsas mensagens que o ego envia: sobre sua flexibilidade, força, resistência. “Quando você se envolve com o ato de fazer a postura, as preocupações do ego desaparecem e você vive o momento presente”, diz Jarvis Chen, assistente de Walden.


Raga dvesha -dois lados de uma moeda
Raga dvesha, apego e aversão, respec­tivamente, são muitas vezes colocados lado a lado. Rosen os vê como dois lados de uma mesma moeda: desejo. Segundo ele, raga significa ‘colorido por’, você co­lorido por suas obsessões e possessões; dvesha é repelir ou sentir repugnância. “Os dois têm a ver com a base do sofri­mento humano – você quer algo que não tem, ou empaca com algo que não quer. Ou consegue o que quer – apenas para perceber que a satisfação não dura.”

Você pode querer fazer uma postura fácil ou evitar uma difícil; ou ainda ter uma relação de amor e ódio com a pos­tura. Tudo isso brinca com raga, dvesha e também é influenciado por asmita e avi­dya. Pensamos que “nós” queremos ter ou não ter algo, mas o ideal é desenvolver a capacidade de reconhecer esses desejos e ver além deles. “As Upanishads falam da diferença entre o prazeroso e o bom. O senso de gratificação imediata vem do prazeroso, enquanto o bom é o que nutre corpo e alma”, diz Lisa Walford, profes­sora de Iyengar em Los Angeles.

Ao ensinar ustrasana (postura do ca­melo) com um bloco, Walden enfatiza entrar em contato com o apoio interno que você precisa para dominar as ondas de desejo. “O bloco ajuda criar movimento nas costas, eliminando o sentido de contrair a lombar. Você está elevando-se do coração, aí está a chave. Pode sentir ondas de raga dvesha na postura, mas sabe que o seu salva-vidas está no bloco.”


Abhinivesha -medo de voar
Se todos os kleshas começam com avidya, terminam com abhinivesha, outro gigante psicoemocional. É frequentemen­te traduzido como “medo da morte”, mas Patricia Walden gosta de chamá-lo de “medo primal” em todas as suas for­mas (incluindo medo de backbends).

Para aprender a reconhecer e superar o medo, você deve se abrir para enfren­tar os outros kleshas e render seus interesses egoicos, ignorância e desejo. Uma postura como urdhva dhanurasana põe o pé na tábua nesse processo. Claro, é pre­ciso refinar e dominar seu alinhamento antes de fazer a postura completa. Wal­den acredita que, mesmo que esse asana cause medo, ele é possível para a maioria das pessoas em até dois anos de prática. A prática de ardha adho mukha vrksasana (meia parede de mão) é crítica para en­carar o desafio de construir força e re­conhecer a força que você já tem. Saiba o que você pode – então faça. Urdhva dhanurasana é uma das posturas mais be­néficas do Yoga. Por ser tão revigorante e expansiva, é possível que seja a mais poderosa ferramenta para atravessar os kleshas, segundo Walden: “As posturas de extensão abrem o praticante para tudo e todos à sua volta, e o colocam em um estado receptivo, o que é bom”.


O básico dos backbends
Reunir as ações preparatórias para os backbends pode ser mais do que metade da batalha, mas não dá para mergulhar sem cuidar do próprio alinhamento. Aqui, algumas dicas para criar estabilidade e aprofundar a qualidade da sua experiência nos backbends.
• Relaxe a mandíbula
• Trabalhe os braços e as pernas
• Aprofunde a respiração
• Mantenha a lombar alongada
“Trazer o cóccix para dentro e focar no relaxamento dos glúteos pode evitar aquela sensação de ‘pinçar’ a lombar”, segundo Patricia Walden. Richard Rosen sugere visualizar o cóccix em direção aos calcanhares e longe da parte posterior da pelve.

• Conecte sua barriga suavemente
“A barriga apoia a sua postura, mas precisa ser flexível. Se começar a endurecer, atrapalhará sua respiração”, diz Rosen.

• Role os ombros repetidamente para trás e para baixo
Mantenha essa rotação longe das orelhas. Isso o ajudará a manter a curva da cervical neutra.



Extensão sobre o almofadão
Comece a se ver com clareza
Coloque um bolster (almofadão) em um tapetinho e sente-se à frente dele com as pernas flexionadas. Deite-se com as costas no bolster de maneira que ele apoie a parte do meio e superior das costas. Apoie a cabeça e o pescoço com cobertores dobrados. O queixo não deve ficar mais alto que a testa. Palmas das mãos para cima, braços a 45º do corpo. Mantenha glúteos se afastando da cintura enquanto esten­de as pernas. Neste backbend passivo, permita-se aceitar o apoio do almofadão de maneira que seu peito se expanda. Observe as emoções e pensamentos. Para sair da postura, dobre as pernas, role do bolster, fique de lado e sente-se.



Urdhva mukha svanasana (postura do cachorro olhando para cima)
Encare os desafios
Deite-se de bruços, com as palmas das mãos no chão, ao lado das costelas. Em uma expiração, estenda os braços e eleve o peito, quadril e joelhos do chão. Mantendo as pernas estendidas, pressione as pontas dos pés no chão e deslize o quadril em direção às mãos de maneira que o peito vá para a frente entre os braços verticais. Ombros rolam para trás para elevar e expandir o peito, a cabeça vai para trás. Sinta como você cultiva a força nos braços e pernas para criar essa mudança positiva no peito. Fique na postura por 1 minuto. Flexione os braços e volte ao chão.




Ustrasana (postura do camelo)
eleve-se de dentro para fora
Ajoelhe-se com as mãos na cintura. Pressione as canelas no chão enquanto leva o cóccix para baixo. Eleve o topo da caixa torácica enquanto começa a acentuar o arco das costas. Se puder, leve as mãos aos calcanhares e pressione-os para ele­var o peito no bloco. Fique por várias respirações. Ao elevar o peito no bloco, você aprende a elevar-se do seu interior. Repare se ter o peito em contato com algo tangível como o bloco o ajuda a se sentir estável e confiante para soltar a cabeça para trás, rumo ao desconhecido. Para sair, pressione as canelas no chão, solte as mãos dos calcanhares e, em uma inspiração, eleve o peito.




Ardha adho mukha vrksasana (meia parada de mão)
Descubra sua força e habilidade
Sente-se de frente para uma parede, com as pernas estendidas e os pés encostados na parede. Marque a distância dos ísquios para a parede. Levante-se, vire-se e apoie-se nas mãos e joelhos. Coloque os calcanhares das mãos onde estavam os ísquios. Espalhe as palmas das mãos e estenda os cotovelos. Coloque a bola de um pé na parede, um pouco mais alto do que o quadril. Caminhe com o outro pé parede acima, deixando as pernas paralelas ao chão, quadril acima dos ombros. Pressione o chão com as mãos, mantendo braços e cotovelos firmes. Quadris e coxas apontam para o teto. Olhar fixo entre as mãos. Fique por várias respirações. Sinta a força em seus braços e a determinação neces­sária para ficar na postura. Depois, em uma expiração, dobre as pernas e volte ao chão.




Urdhva dhanurasana (postura do arco elevado)
Sinta o espaço radiante do seu coração
Tendo praticado as outras posturas, você juntou as peças necessárias para esta. Deite-se de costas no chão, joelhos flexionados e pés afastados na distân­cia do quadril. Calcanhares próximos das nádegas. Flexione os cotovelos e coloque as mãos no chão próximas às orelhas, com os dedos apontando para os pés. Estreite os cotovelos em direção às orelhas e mantenha os braços paralelos. Se for difícil, deixe as palmas um pouquinho para fora. Agora, pressione pés e mãos no chão, eleve seu tronco e estenda os braços. Eleve as escápulas em direção à cintura e a parte de trás das coxas longe do chão. Se possível, olhe para os pés para aumentar o arco das costas. Fique por algumas respirações, mantendo os olhos abertos e o peito em expansão. Sinta como você esquece as preocupações da mente e deixa a inte­ligência do coração brilhar de dentro quando está totalmente envolvido em fazer o asana. Em momen­tos assim, você consegue se ver mais claramente e experimenta a alegria na essência do seu ser. Para sair, expire, dobre os joelhos e cotovelos e volte a cabeça para cima para descer o tronco.

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