Vamos malhar, amar, mudar


FILOSOFIA

Eu não esperava me mexer na minha primeira aula de Yoga – mas, no fim, nossa, eu estava mexida!
 


Quinze anos atrás, em uma noite de inverno em Nova York, fui à minha primeira aula de Yoga. Eu vestia jeans justos, botas de caubói e uma malha de gola olímpica bem quente. Fui àquela aula por recomendação de uma amiga. Ela não tinha me dito nada, e também não me ocorreu que eu deveria vestir algo mais confortável para a aula. Sinceramente, eu não tinha ideia de que teria de fazer algo físico durante a prática de Yoga. Perdoe a minha ignorância, mas espe­rei que fosse, sei lá, uma palestra? Apostilas e um resu­mo? De qualquer maneira, eu sabia que precisaria de energia para o que quer que acontecesse naquela noite. Então, parei em uma lanchonete em frente ao estúdio de Yoga para um calzone de frango e uma Coca Light.

Preciso dizer aqui o quanto eu estava desconectada do meu corpo naqueles anos? Talvez um jeito bom de dizer é que, naquela época da minha vida, eu tratava meu corpo como um carro alugado – um mero emprés­timo, avariado e surrado, que não tinha nenhuma razão de existir além da de transportar a minha cabeça de um lugar a outro para que eu pudesse ver coisas, me preocu­par com coisas, pensar em coisas e resolver coisas. E o meu corpo fazia bem esse trabalho, mesmo que eu nun­ca tivesse cuidado dele. Ou pelo menos meu corpo fazia o trabalho na maioria das vezes – até que eu ficasse tão mal da minha dor nas costas que não conseguisse dor­mir nem ir ao trabalho, quando os músculos em volta da minha coluna entravam em um colapso tão profundo que eu não conseguia me levantar do tapete da sala.

Mas isso só acontecia algumas vezes por ano. E esse tipo de coisa era perfeitamente normal. Ou pelo menos era normal na minha família. Eu me lembro de fazer as apresentações musicais na escola e de jogar hóquei com dor nas costas. Servi mesas como garçonete, caval­guei, dancei em casamentos e me apaixonei – sempre com uma dor nas costas. Todos os Gilberts têm “cos­tas ruins”. Não me ocorreu que eu não pudesse não ter costas doloridas. Mas uma amiga, preocupada com os episódios cada vez mais constantes das minhas crises de dor, sugeriu que eu fizesse Yoga, e, sei lá – sem pensar muito nisso, fui.

Eu poderia dizer imediatamente, assim que entrei no estúdio, que aquela coisa de Yoga não era para mim. Primeiro, havia aquele aroma so­lene de incenso, o que me pareceu excessivamente sério e até ridículo para alguém que estava muito mais acos­tumado com cheiro de cigarro e cerveja. Depois tinha a música (mantras, Deus me ajude!). Na frente da classe havia algo que parecia um altar, e claramente não era uma piada. E a professora – uma autêntica velha hippie em seu autêntico e velho collant de ginástica – começou uma conversa fiada sobre como o som do Om era a cau­sa primordial do Universo, e tal.

Sinceramente, era um pouco demais para mim. Eu era, afinal, uma jovem mulher que nunca saía de seu apartamento sem colocar um colete de sarcasmo justo e protetor. E, falando em jus­to, minha gola olímpica caiu muito mal, porque a sala estava fervendo. Meus jeans cortavam minha barriga toda vez que eu me curvava para alcançar os dedos dos pés – e a professora pediu para fazermos esse movi­mento muitas vezes, o que, para ser sincera, pareceu um pouco puxado para uma primeira aula. E, pior de tudo, aquele calzone que eu acabara de comer ame­açava fazer uma reaparição o tempo todo. Na real, na maior parte da aula, eu me senti o pró­prio calzone – estufada, assada e cercada de algo muito, muito volumoso.

E mais, depois de cerca de uma hora, quando o suor escorria loucamente até nos meus olhos (olhos que eu usava com apego sardônico o tempo todo), veio esse momento. A professora pediu que fizéssemos essa coi­sa – essa coisa estranha de torcer o corpo deitado no chão. Ela nos disse para deitarmos de costas, abraçan­do os joelhos em direção ao peito e depois nos con­vidou para gentilmente (e estou bem certa de que ela usou a palavra “gentilmente”) apontar os joelhos para a direita enquanto abríamos e estendíamos os braços, virando a cabeça para a esquerda.
Bem. Isso era novo.

Isso era, na verdade, uma revelação – e eu soube ins­tantaneamente. Soube sem dúvida nenhuma que mi­nha coluna nunca tinha feito essa forma simples mas precisa – essa torção, esse alcance, essa extensão pro­funda. Algo mudou. Algo elevou. E mesmo em meus jeans justos, mesmo em meu suéter “piniquento”, mes­mo dentro de meu colete de sarcasmo impenetrável, em algum lugar profundo abaixo disso tudo, minha coluna começou a falar comigo, quase gritando. Mi nha coluna disse algo como: “Oh, meu Deus, oh, minha querida misericórdia divina – por favor, não pare, porque isso é tudo o que eu sempre precisei, e isso é o que vou precisar todos os dias pelo resto da minha vida, finalmente, finalmente, finalmente...”

Então aquela hippie velha paté­tica em seu velho collant patético veio e pressionou suavemente uma mão sobre o meu quadril e a outra sobre o meu ombro para abrir a torção só mais um pou­quinho... e eu me debulhei em lágrimas.
Por favor, entenda – não quero dizer que dei uma choradinha ou alguns soluços; quero dizer que come­cei a chorar em alto e bom som. Quando deitei ali chorando e abrindo a torção, repleta de vontade, repleta de preces, repleta de dúvidas, repleta do desejo de ser um ser hu­mano melhor, repleta do pedido ou­sado de me tornar a primeira pessoa na história da família que não sente dor nas costas todos os dias, repleta da descoberta repentina e chocan­te de que havia um tipo diferente de inteligência nessa vida, e ela podia vir a nós apenas por meio do corpo... bem, eu não sabia a palavra para nada dessas coisas, mas depois aprendi que estava preen­chendo meus pulmões e coração com uma coisinha que o povo do Yoga chama deshakti.

Essa coisa de Yoga não era só uma solução possível para a dor nas costas de toda uma vida, mas uma revelação. Um voltar para a casa. Um sentido de ser um com a subcorrente energética do Universo. Uau!

Arrastei-me para casa meio sem rumo, em torpor.

Preciso de mais disso, continuei di­zendo a mim mesma. Preciso de muito, muito mais disso.

Então, nos 15 anos desde aquela noite, dei a mim mesma mais disso. Muito, muito mais. Eu dei para mim anos de Yoga, na ver­dade; pratiquei pelo mundo todo, onde quer que eu estivesse – de Mumbai a Nashville a Santiago e em todos os lugares entre esses. Eu me agarrei a essa disciplina de um jeito que nunca aconteceu com nenhum outro “hobby”, o que simplesmente mostra que Yoga não é um hobby para mim, mas um porto seguro. Para mim, encontrar uma boa aula de Yoga em uma cidade desconhecida faz com que eu me sinta talvez como os católicos de antigamente quando eles, durante uma viagem, topavam inesperadamente com uma missa celebrada em latim: nas primeiras sílabas familiares do ritual, eles estavam em casa de novo.

E quer saber? Não precisa ser nem uma aula de Yoga boa. O locutor Garrison Keillor disse uma vez que a pior torta de abóbora que ele já comeu não era muito diferente da melhor torta de abóbora que ele já comeu, e eu me sinto exatamente assim com as aulas de Yoga – até os estúdios mais caídos ou mais rudimentares me proveram com a oportunidade de transformação. Veja você, já conheci professores verdadeiramente transcendentais, mas também tive experiências com verdadeiros trastes (incluindo uma mulher que grita­va sem parar na aula, “Force! Olhe para a colega ao lado e tente fazer o que ela está fazendo!”). De uma maneira ou de outra, não tem muita importância. Uma vez que aprendi o básico do meu próprio Yoga – uma vez que descobri as limitações e ne­cessidades do meu corpo –, eu sabia que poderia sempre alcançar meu próprio ponto de prática perfeita dentro da condução de algum pro­fessor, não importa o quão imper­feito ele (ou eu) possa ser.

Depois de uma década e meia de prática, fui a mui­tas aulas de Yoga cansada, pesada e carente, mas algo sempre acontece, quase apesar de minha fraqueza e resistência. Você não é o que acreditava ser, disse a mim mesma naquela noite no caminho de volta da minha primeira aula, em meus jeans justos e suéter su­ado – e aprendi e reaprendi essa lição continuamente, por anos agora. Sempre vem o momento sagrado, ge­ralmente no meio da aula, quando eu de repente des­cubro que larguei minha dor e fracassos, que larguei minha mente humana pesada, e que me transformei por apenas um instante em algo além: uma águia, um cachorro, um gato, uma garça, um golfinho, uma criança.
E então volto para casa novamente em minha pró­pria pele para fazer outra tentativa de viver, e tentar fazer melhor. E as coisas estão melhores, muito me­lhores. E, a propósito, o colete invencível se foi para sempre. E, não, minhas costas não doem mais. 
Elizabeth Gilbert é autora de Comer, Rezar, Amar. Seu novo livro, Comprometida, foi recentemente publicado pela editora Objetiva.

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