A necessidade de ser feliz
por Tales Nunes
Todos nós possuímos desejos. Os desejos não surgem em nós misteriosamente, eles são cultivados. Primeiro surge um pensamento que é desenvolvido, alimentado e, como consequência, torna-se um desejo. Nós cultivamos desejos assim como cultivamos nossas plantas. Regamo-os e adubamos a terra para que eles ganhem força. Porém, quando necessitamos podá-los, não sabemos qual ferramenta usar, pois a plantinha virou uma árvore frondosa. E acabamos confundindo desejos com necessidades.
Desejos são cultivados, necessidades independem da nossa vontade ou da nossa contribuição consciente para existirem. A fome, por exemplo, não é um desejo, é uma necessidade. Todos nós sabemos disso. Poucos de nós reconhecemos, porém, que a felicidade é igualmente uma necessidade. E felicidade não é o oposto da tristeza, o oposto da tristeza, digo, é a alegria. Felicidade é plenitude. Todos nós temos uma necessidade interna de sermos felizes. Uma necessidade de sermos livres da limitação. Nós temos uma conclusão íntima de que somos limitados e queremos nos livrar dessa conclusão.
Se você tem um desejo, que é cultivado, você tem opção de realizá-lo ou não. E você pode não ter os meios de satisfazê-lo. Um montanhista precisa ter pernas e braços para escalar. Uma telefonista precisa escutar para executar o seu trabalho. Porém, se você possui um desejo que é natural, que não é cultivado, ele está fora do seu controle e, naturalmente, você possui os meios de realizá-lo. Assim é a ordem do Universo, se existe uma necessidade, há os meios de suprir essa necessidade. Você tem fome e a natureza lhe fornece os meios de supri-la; você precisa respirar e a natureza lhe provê o ar necessário; você sente sede, há água para saciá-la.
Sabemos o quão é difícil abrir mão de desejos quando estes estão estabelecidos. Das necessidades, por sua vez, não temos nenhuma liberdade para decidir que não vamos supri-las. Nós não podemos abrir mão de querermos ser pessoas, plenas, livres. Todos nós, por diferentes meios, buscamos a completude e a liberdade. Então, só temos uma opção: realizar essa necessidade. Pois, certamente a natureza nos proveu de todos os meios de realizarmos essa necessidade.
Podemos perguntar, então: de onde vem essa necessidade básica? Vem da nossa verdadeira natureza, que é de completude. Em diversos momentos das nossas vidas nós experimentamos a felicidade. E com essa lembrança interna seguimos em busca de uma experiência mais duradoura, achando que a encontraremos fora de nós. Não conseguimos reconhecer que o objeto exterior apenas fez com que relaxássemos e revelou a nossa real natureza.
Não reconhecendo essa felicidade dentro de nós, buscamos meios para realizar essa necessidade que não são eficientes. De tal maneira que podemos observar que nós continuamos buscando, buscando, buscando e parece que nunca alcançaremos a tão esperada felicidade. Isso acontece porque a felicidade não pode ser adquirida, ela já faz parte de nós. Todas as experiências que achamos que vão nos trazer completude, quando atingidas sentimo-nos realizados, porém a mente logo sente-se entediada e sai em busca de outra coisa. Observe esse processo acontecer e reconheça-o. Essa observação é fundamental no caminho do autoconhecimento.
Ao reconhecermos essa busca que parece não cessar, o que devemos fazer, abandonar a busca que é movida pela necessidade? Se é uma necessidade, não temos como abandonar, pois é natural. Mas ao mesmo tempo não conseguimos satisfazê-la. Então chegamos a um impasse. Não tenho como abandonar a necessidade de ser completo e não conheço os meios para satisfazê-la.
Analisando isso, nos sentimos desprotegidos, desamparados como uma criança. Temos uma profunda carência, mas fomos educados a não reconhecê-la e muito menos a pedir ajuda para resolvê-la. Então mascaramos esse sentimento com um ar de autoconfiança perante a maior parte das pessoas e o extravasamos em momentos de intimidade, nos relacionamentos mais próximos. E assim seguimos projetando a nossa completude em objetos, em realizações e nas pessoas que quebram a nossa armadura e conseguem se aproximar do ser carente que somos.
Qual a saída então? Adquirir coisas não é a solução. O que desejamos não é uma coisa. Felicidade é uma coisa? Felicidade, plenitude e liberdade não são coisas, não podem ser adquiridas por nós, pois já somos liberdade e felicidade. A felicidade está exatamente onde está o que nos aprisiona. Onde está o aprisionamento, na nossa testa? A testa não se sente pequena. Ela não tem complexo. Ela simplesmente é, assim como os animais. Animais não têm conflito com auto-imagem.
“Eu não sou bom o suficiente, eu sou limitado, sou infeliz” é uma conclusão que existe na idéia que nós temos de nós mesmos. Está na nossa mente. O que nos aprisiona e nos faz infelizes é a nossa própria mente. A liberdade não está fora de onde está o que nos aprisiona. Quantas pessoas na história da humanidade descobriram a liberdade e a felicidade dentro de uma cadeia! Portanto, a liberdade e a felicidade não estão fora, no amanhã, no céu, no pós-morte.
Descobrir é o que nós precisamos, já está tudo aqui, já possuímos tudo, não iremos produzir nada de novo dentro de nós. Para descobrir não é necessário fazer força, transformar, mudar, agir. Qualquer verbo que use para expressar o que é necessário não é totalmente adequado, porque não é uma ação que vai nos levar à felicidade. Talvez os verbos mais adequados a se usar sejam “relaxar” ou “entregar”. Mas relaxar não é uma ação, é uma atitude.
O que é necessário é uma mudança cognitiva, uma mudança na maneira como nos enxergamos e como enxergamos o mundo. Primeiro, é preciso reconhecer que nós não somos separados do Todo e que o mundo não é um ambiente hostil do qual precisamos nos defender. Tudo está dentro de uma Ordem perfeita e nós fazemos parte dessa Ordem. Segundo, é importante fazermos o que for o nosso dever para mudarmos em nós e no mundo o que for possível mudar, para contribuir com o Todo. Terceiro, é fundamental, para mantermos a nossa mente tranquila, abrirmos mão do controle e relaxarmos quanto ao resultado das nossas ações, pois o que recebemos como resultados delas é um grande mistério e faz parte de uma Ordem sobre a qual não temos controle.
Por fim, percebemos que a vida é um fluxo constante de transformações. Relaxados, conseguimos assistir a esse grande espetáculo com serenidade e contemplação, sem perdermos o nosso estado natural, que é de paz e felicidade. Para isso, precisamos abrir mão de uma auto-imagem estática, de nós e do mundo, construída desde muito tempo, e seguir o fluxo de transformação constante da vida. E como um rio que passa, passamos pela vida, com placidez e beleza, sem a necessidade de querermos sugar dos outros e das coisas a nossa felicidade, mas reconhecendo-a em nós mesmos. Quando reconhecemos a felicidade em nós mesmos, reconhecemo-a em todas as situações, até mesmo nos momentos de tristeza ou solidão. Então não somos mais aqueles que constantemente querem tirar do mundo, tornamo-nos aqueles que acrescentam ao mundo. Aqueles que ajudam os outros a suprir as suas necessidades, inclusive a de descobrir a felicidade.
*Texto publicado originalmente na Revista Prana Yoga Journal, mês de agosto.
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