FILOSOFIADeleite-se



Abrace os prazeres – eles têm o potencial de levá-lo ao mais elevado tesouro: habitar o seu verdadeiro Eu. Sua capacidade de aproveitar a vida é a assinatura da sua criação.


Ilustração: Aimee Sicuro


Uma amiga vegana me disse que estava em pânico porque se­guia sua dieta por cinco anos, mas por alguns meses estava desejando pizza, sorvete e outros alimentos.

Minha intuição dizia que seu siste­ma estava procurando equilíbrio. Se você é saudável, desejar alguma forma particular de prazer pode ser um sinal de que foi muito longe na abstenção.

É compreensível que os yogis fiquem confusos com essa linha entre prazer e autoindulgência, porque as tradições do Yoga de alguma forma pularam o assunto prazer. Algumas delas, espe­cialmente Yoga clássico e Vedanta, veem uma contradição entre Yoga e satisfação. Esse ponto de vista é resu­mido em um famoso verso no Katha Upanishad, texto do Yoga vedânti­co: “Tanto o bom quanto o prazer se aproximam de uma pessoa. A escolha sábia é o bom em vez do prazer”.
Gerações têm visto isso como um chamado para usar um chão de con­creto em vez de um tapete confortá­vel, e celibato no lugar de união (tal­vez faça mais sentido ver como um incentivo para sair da cama mais cedo para praticar!). Mas há uma verdade no que o texto diz, especialmente se substituirmos a expressão “zona de conforto” por “prazer”. Transforma­ção requer sair do que é confortável.

Entretanto, os autores tântricos de Vijnana Bhairava e Spanda Karikas – dois textos yóguicos avançados – têm outras nuances do prazer. Se o Yoga clássico e o Vedanta veem o mundo como fundamentalmente ilusório, e seus prazeres como distrações da transcendência, os tântricos olham para o corpo e o mundo como shakti, ou energia divina consciente. Uma das ideias mais bonitas do Tantra é que o corpo, os sentidos e o cérebro são instrumentos dos quais o espíri­to, ou consciência, consegue prazer. Quando enxerga a vida dessa manei­ra, a satisfação – com consciência – torna-se uma maneira de honrar o Di­vino. Um famoso verso tântrico diz: “Algumas pessoas pensam que onde há Yoga não pode haver prazer, e onde há prazer mun­dano não há Yoga. Mas nesse caminho, tanto Yoga como prazer mundano sentam-se na palma de sua mão”.

Claro que juntar Yoga com satis­fações mundanas requer disciplina. Um de meus professores aconselhou uma aluna obesa, viciada em chocola­te, a se oferecer pequenos pedaços de chocolate como se oferecesse a uma deidade interna – e mastigá-los bem devagar. Disciplina e senso de sagra­do são a chave para isso. Mas o prazer também é.


Prazer dirigido
Prazer é o centro emocional de nos­so senso de estar vivo, além de ser o motivador principal de nossas vidas. É impossível manter uma prática a menos que goste. Qualquer coisa que pratique só porque faz bem para você vai desaparecer a menos que tenha prazer com isso.

De um ponto de vista místico, sua capacidade de satisfação é a assinatu­ra da inerente felicidade de criação. Do ponto de vista da ciência do cére­bro, você está ligado pelo prazer. Os centros de prazer estão localizados no mesencéfalo, o local das emoções, e são concebidos para responder ao estímulo que garante sobrevivên­cia física. Comida, sexo, defecação e exercícios aeróbicos acionam os centros de prazer, mandando quí­micas como dopamina e serotonina para a área cortical, onde o cérebro reconhece que algo que está fazendo é bom e deve continuar. Em ciclos saudáveis, a área superior do cérebroescolhe prazeres que são bons para a sobrevivência do indivíduo e da co­munidade. Em ciclos não saudáveis, o sistema pode ser sequestrado por desequilíbrios, sendo genéticos, quí­micos ou por estresse. Isso é o que acontece em nossa estressada socie­dade, na qual muitos estão condi­cionados a conseguir prazer em junk foods, drogas e formas de entreteni­mento ruins para o nosso bem-estar, de toda a comunidade e do planeta. Mas a tendência natural do corpo é tratar o prazer como um sinal de que está no caminho certo.

Esses centros de prazer são desen­cadeados por atividades mais sutis, incluindo posturas de Yoga, pranaya­ma e meditação; sentimentos como empatia, gratidão e amor; e muito mais. Pesquisas sugerem que as on­das de dopamina que o cérebro expe­rimenta como recompensa são mais fortes e duram mais quando o que os aciona é eudônico – amável, pacífico e generoso, e bom para a vida. A ciên­cia do cérebro confirma algo que os sábios já sabiam: o prazer é útil para a sobrevivência, e também tem muitos níveis. Você chega a camadas profun­das com o esforço de estar totalmen­te presente, exercitar a atenção, agir amorosamente, desistir das amarras que o “eu” egoico apega à experiên­cia. E isso frequentemente demanda que você saia de seu conforto.

Não é o prazer que antagoniza o bom. O oposto do bom é nosso vício em conforto. Isso é uma ideia que vem da escola Mussar, um sistema de treinamento ético da tradição místi­ca judaica. Essa ideia adiciona uma dimensão à discussão sobre o prazer que pode ajudá-lo a entender mais profundamente o que textos como Katha Upanishad querem dizer. Quan­do o sábio da Katha Upanishad nos diz que a pessoa sábia escolhe o bom em vez do prazer, ele quer dizer que es­colhe o bom em vez do confortável. A pessoa sábia escolhe o esforço e a profundidade em vez da preguiça e da superficialidade.


Indo fundo
No sentido yóguico, o prazer mais pro­fundo vem da maior profundidade. É quando você entra no prazer – tanto pela atenção, pelo saborear profundo, ou entrega – que suas qualidades divi­nas se tornam aparentes.

Para experimentar profundamen­te o Yoga do prazer, é útil pensar no prazer em cinco níveis básicos, que vão do relativamente superficial ao extremamente sutil – prazer sensual, prazer da intimidade amorosa, prazer da ação intencional, prazer da criati­vidade e prazer da imersão no espí­rito. Os níveis sutis de prazer são os mais ricos e os mais próximos do que as Upanishads citam como “o bom”. Entendemos isso intuitivamente sem sermos capazes de colocar em pala­vras. O que nem sempre entendemos é que os prazeres sutis requerem mais esforço, mais prática.

Esses níveis de prazer não são inter­cambiáveis. É uma das razões de por que precisamos de todos os tipos de prazer – porque cada um tem seu valor e suas dádivas. Mas nenhuma quantia de prazer sensual dará a você a experi­ência da intimidade amorosa profun­da. Da mesma maneira, a alegria da conexão amorosa não pode substituir o prazer sexual, embora certamente melhore. E assim por diante.


Prazeres sensuais
Os prazeres sensuais incluem o gosto da comida, o toque ou o abraço de um amante, a visão de algo lindo. Eles po­dem ser bem primitivos ou altamente refinados. Mas ambos estimulam os centros de prazer no sistema límbico – embora quando as ondulações de prazer do toque de um amante ou um prato maravilhoso de um renomado chef alcançam os centros mais im­portantes do córtex, a apreciação que estimulam pode causar arrepios de deleite que prazeres mais grosseiros não conseguem.

O que é preciso para aprofundar seu prazer sensual? A prática para apreciação máxima nesse nível é a atenção máxima – a habilidade de se tornar completamente presente para um gosto, um toque ou uma fragrân­cia. Quanto mais presente conseguir estar no físico e em seu próprio cor­po, maior o prazer.

Distração é o grande inimigo do prazer. Quando estamos distraídos, substituímos quantidade por quali­dade, buscando outra dose, outro es­timulante ou um corpo diferente por­que não estamos presentes o suficien­te para apreciar o que temos. Quando estiver sentindo um déficit de prazer, os mestres do assunto recomendam mudar a atenção para o interior e saborear o cheiro, o toque, a visão de uma experiência sensual. O tex­to tântrico Vijnana Bhairava sugere uma prática: quando estiver comen­do um pêssego suculento, ou vendo o pôr do sol, ou sendo despertado pelo toque de alguém que ama, foque na sensação interna de prazer em vez do fenômeno que o despertou. Deixe a sensação expandir. Quando conse­guir estar interna e completamente presente em qualquer forma de pra­zer sensual, você abrirá as portas para um samadhi yóguico profundo, um tipo de êxtase físico de alegria.


O prazer da intimidade
Quando vejo alguém que amo se aproximando, algo se abre em meu coração, algo que tem a ver com quão especial essa pessoa é, ou com minha habilidade de perceber a beleza única de cada um. Esse é o prazer da cone­xão íntima. Essa conexão pode acon­tecer com qualquer indivíduo, e até um animal de estimação ou grupo.

As práticas para experimentar o pra­zer em amar são confiança e aceitação. O prazer profundo da intimidade de amar aparece quando você é capaz de manter o sentido da conexão íntima com outra pessoa mesmo quando ela não corresponde a suas necessidades. O Yoga da intimidade começa, como todas as formas de Yoga interna, com consciência. Torne-se consciente das expectativas sutis que tem. Notequando você se apega a algum resulta­do, e quando está se segurando na dor. Todas essas coisas ficam no caminho do prazer do amor íntimo. Esse é o motivo de por que o perdão é uma das práticas de Yoga para manter o cora­ção aberto.


O prazer da absorção em trabalho significativo
Quando o historiador Heinrich Zim­mer reconta o mito de Kama (o deus indiano do prazer), a primeira coisa que o deus diz quando nasce no mundo é: “Qual é o meu trabalho? Digam-me para que estou aqui, já que sem pro­pósito a vida não tem sentido!”. Colo­car essas palavras na boca do deus do prazer diz algo sobre a alegria desse terceiro nível de prazer. Nem o prazer físico nem o prazer do amor íntimo po­dem ser substitutos do prazer que você consegue de uma atividade significati­va, de se devotar a uma causa em que acredita profundamente e que parece transformar o mundo em algo melhor.

A prática yóguica para acessar esse nível de prazer é fazer pela causa da tarefa, e não pelo reconhecimento ou aprovação. A Bhagavad Gita en­sina uma fórmula testada pelo tem­po. “Você tem o direito à ação, mas não aos seus frutos.” Quando traba­lha pelo reconhecimento em vez do trabalho, nunca alcança verdadeiro prazer no que está fazendo. O prazer vem de sua disponibilidade de fazer um esforço em prol de algo maior do que o conforto imediato, um esforço por sua própria causa.


O prazer da inspiração e criatividade
Quando você está em um estado de genuína inspiração criativa, está conectado a uma força maior. Estar inspirado criativamente é entrar em uma zona na qual ideias, movimen­tos, palavras e música fluem por você. O prazer da verdadeira criatividade vem do fato de se conectar direta­mente com o Eu, a criatividade inata da consciência universal. Deus é um artista, diz um dos sábios do Shivaís­mo da Caxemira, e quando estamos com a criatividade máxima, estamos conectados com o Divino.

O que é preciso para experimentar o prazer de estar inspirado? Primei­ro, você precisa estar disposto a se render a isso – a se liberar de medos, dúvidas e crenças que impedem a ins­piração. Segundo, precisa ter habili­dade e paciência de traduzir a inspi­ração em ação. E terceiro, é preciso ser capaz de notar e evitar o orgulho quando fica tentado a se apropriar do presente da inspiração. Experi­mentar a profundidade de alegria na inspiração demanda que você deixe o sentimento do “eu fiz isso”, e que re­conheça que inspiração criativa vem da essência, do “Eu”. A prática para experimentar o prazer da criativida­de é a não execução: o que o taoísmo chama de não ação.


O prazer do espírito puro
Quanto mais profundo o nível de prazer, mais transpessoal se torna. A mais sutil e profunda camada de pra­zer é pura, comunhão sem intermedi­ário com a essência, com Deus, com o eu interior. Você experimenta isso descansando na consciência pura. Mas também pode experimentar esse tipo muito sutil de prazer como uma comunhão íntima com uma forma pessoal do Divino. O Yoga da devo­ção, ou Bhakti Yoga, é conhecido por ser o caminho do prazer profundo, sutil. Tem a qualidade sensual dos mais elevados prazeres físicos, a do­çura da intimidade, o compromisso generoso de estar imerso em algo maior que você mesmo, e a inspiração explosiva da criatividade verdadeira.

O prazer do espírito puro vem de quando o sentido do eu separado se dissolve – mesmo que por um mo­mento – e você entra no estado de puro ser. A chave é deixar o ego se dissolver. Não é fácil. No entanto, embora não consiga forçar o ego a se dissolver, há uma prática que pode trazer momentos de abertura para a consciência pura.

Tente. Por um momento, apenas largue o pensamento que você é um eu separado. Reconheça que “seu” corpo, mente e emoções estão fun­cionando. Eles continuam a funcio­nar perfeitamente bem sem um senso de ter um “eu” para experimentá-los. Note o que sente. Pode provar o raro prazer de liberdade? Quando o senso de “eu” voltar, deixe ir de novo. Con­tinue sintonizando para o que per­manece quando o “eu” se dissolve por um momento. Veja se pode se tornar um conhecedor do prazer sutil que surge quando o ego relaxa.


Imersão completa
Uma vez que experimente estar livre do ego, você consegue trazer essa consciência para qualquer experiência de prazer. Todo nível de prazer pode ser uma via para o verdadeiro “eu” se souber como entrar na experiência da satisfação – sem a separação que o ego cria. Uma vez que saiba como entrar na experiência essencial de prazer, descobrirá que pode trazer qualquer experiência para esse lugar sem tem­po. É o segredo que os yogis tântricos nos apontam. Não importa o que se experimenta. Quando se vira para dentro do sentimento de prazer, esse sentimento o conectará à verdadeira fonte de todo prazer, que é o “eu”.

Esse é o presente interno que qual­quer prazer oferece. Você tem apenas de saber como parar e saborear esses momentos de prazer e deixá-los virar sua atenção para dentro, para deixar cada prazer levá-lo à sagrada alegria que é o seu centro.
Sally Kempton é internacionalmente reconhe­cida como professora de meditação e filosofia do Yoga e autora do livro Meditation For The Love Of It. (sem tradução no Brasil). sallykempton.com.
 

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