A relação entre a ciência e o Yoga




Estudos desde os mestres indianos do século 19 à biologia molecular.
 




O século 19 foi proveitoso em produzir mestres indianos que influenciariam o Ocidente de modo ímpar: Krishnamurti, Vivekananda, Shivananda, Paramahansa Yogananda, Krishnamacharya, Bhaktivedanta swami Prabhupada e por que não mencionar Mahatma Gandhi? Todos nasceram na segunda metade do século 19 e viveram em parte do século 20.
Poucos se lembram, porém, de um swami que viveu literalmente todo o século 19 e, ao longo dos seus mais de 120 anos de vida, deixou-nos um legado que motivou gerações de praticantes e estudiosos do Yoga: Paramahansa Madhavadas Maharaj. Esse homem foi o primeiro a defender que os difusores do Yoga buscassem uma linguagem compreensível e significativa para o mundo contemporâneo, livrando-o de mitos que comprometiam a reputação desse sistema e buscando uma compreensão científica de seus aspectos passíveis de investigação.

Após sua morte, em 1921, dois dos seus mais brilhantes discípulos iniciaram um árduo trabalho para levar adiante essas sugestões de Madhavadas: swami Kuvalayananda e shri Yogendra, ambos também nascidos no século 19. Kuvalayananda fundou, em 1924, o Instituto de Kaivalyadhama, com o primeiro laboratório destinado ao estudo científico do Yoga em todo o mundo. Lá ele fundaria também um centro de estudos literário-filosóficos, um hospital e uma escola destinada à formação em Yoga.

Ainda em 1924, Kuvalayananda publicou o primeiro estudo laboratorial que investigava uma técnica de Yoga, verificando a redução da pressão intrarretal durante a prática do basti (kriya em que se faz a sucção de água pelo ânus para purificar o intestino), pleiteando uma hipótese científica para explicar a dinâmica dessa técnica cujos efeitos eram frequentemente interpretados como consequências de um poder mágico dos praticantes.

Kuvalayananda propôs que a elevada posição do diafragma, juntamente com o isolamento do músculo reto abdominal, leva ao aumento do volume e à redução da pressão no abdome, gerando a sucção da água para o cólon, denominando este “vácuo” de Madhavadas Vacuum em homenagem ao seu guru. Esta hipótese foi questionada por alguns críticos, porém estudos posteriores do próprio Kuvalayananda a confirmaram.

Poucos anos depois, em 1928, o segundo centro de investigações científicas sobre o Yoga foi fundado por Yogendra em Santa Cruz, Mumbai. Yogendra já havia feito um interessante trabalho de divulgação do Yoga nos Estados Unidos no início da década de 1920, prescrevendo um sistema ordenado de práticas (principalmente asanas e kriyas), que, segundo suas próprias palavras, “passava mais por um sistema místico e mágico do que por uma ciência”, mas que deveria ser visto como “um modo de vida que viabiliza a saúde perfeita — física, mental, moral e espiritual”. Embora não fosse sua intenção trabalhar com Yoga como terapia, logo começaram a procurá-lo pessoas com inúmeras doenças para se tratarem e isso o motivou a investigar os efeitos terapêuticos de distintas técnicas de Yoga, como os netis.

Durante a década de 1930, esses dois institutos cultivaram uma saudável rivalidade em termos de produção científica, mas Kuvalayananda começou a formar uma equipe de pesquisadores que impulsionou inúmeros trabalhos originais em Kaivalyadhama, dentre os quais uma investigação das alterações de pressão arterial em distintas técnicas, o que até hoje pode ser uma referência para nos guiar nas indicações e contraindicações de distintos asanas para hipertensos e hipotensos.

Um dos orientandos de Kuvalayananda chamado Behanan foi o primeiro a investigar, em 1937, os parâmetros fisiológicos dos estados de transe meditativo, constatando a redução do consumo de oxigênio e evidenciando a redução do metabolismo nessas condições, abrindo perspectivas para aplicações terapêuticas e preventivas das práticas de meditação.


Estudos no Ocidente
Pouco tempo depois, a primeira cientista ocidental decidiu investigar efeitos do Yoga em um caso intrigante: os yogis que faziam o coração parar de bater. Therese Brosse foi à Índia atrás desses praticantes e publicou seu estudo em 1946 com resultados que intrigaram a comunidade científica: ela não constatou atividade eletrocardiográfica nesses yogis durante a meditação profunda e não pediu uma explicação satisfatória para tal fato.

Esse enigma viria a ser esclarecido na década seguinte, quando uma equipe liderada por um grande fisiologista indiano, Anand, constataria uma atividade eletrocardiográfica mínima, porém presente nesses praticantes, explicada como fruto de um estado hipometabólico (com pouca atividade orgânica) associado à meditação, e acentuado pela redução do retorno venoso gerada pelas compressões dos bandhas e asanas adotados, o que diminuía o fluxo de sangue ao coração. Como consequência, há uma redução da frequência cardíaca e da força de contração do coração a níveis imperceptíveis, não audíveis com estetoscópio nem sentidos com a palpação do pulso. Caía mais um mito.

Na mesma década de 1950, o Instituto de Kaivalyadhama continuava produzindo um volume grande de estudos e Kuvalayananda publicaria o primeiro livro com o título de Yogaterapia, com algumas perspectivas visionárias para a época, tais como a descrição de mecanismos psicossomáticos e do potencial terapêutico do Yoga nessas condições. Em 1955, a dupla Das e Gastaut publicou o primeiro estudo descrevendo alguns parâmetros fisiológicos do suposto estado de samadhi, investigando praticantes experientes. O dado curioso é que foi constatada, nesses casos, uma súbita elevação da frequência cardíaca e da atividade elétrica cerebral, apesar da manutenção de um profundo relaxamento muscular no momento em que os praticantes supostamente entravam em samadhi, permitindo concluir que se trata de um estado apenas aparentemente passivo, porém com parâmetros internos condizentes com a condição de êxtase.

A partir dos anos 50
Vários eram os pesquisadores científicos do Yoga na Índia entre 1950 e 1960, tais como Vinekar, Karambelkar, Dwarkanath, Bhole, Gharote, Anand, Chinna, Bagchi e Wenger. Esses dois últimos, em particular, tiveram a interessante iniciativa de montar um laboratório móvel para estudar os yogis em seus próprios ambientes, inclusive indo às montanhas do Himalaia. Eles fizeram importantes descrições de efeitos até hoje difíceis de explicar pelos parâmetros científicos convencionais, tais como praticantes que conseguiam suar no clima rigorosamente frio das montanhas enquanto se mantinham em meditação.

Enquanto na Índia esses estudos efervesciam, os institutos de pesquisa no Ocidente ainda se mantinham alheios à ideia de estudar cientificamente o Yoga e a meditação, mas isso logo mudaria, pois a contracultura dos anos de 1960 motivou essas práticas no mundo ocidental. Uma das escolas que mais teve repercussão nos Estados Unidos nesse período foi a Meditação Transcendental (MT), difundida pelo polêmico Maharishi Mahesh Yogi: o guru dos Beatles.
Quando uma equipe de cientistas de Harvard publicou os parâmetros fisiológicos que diferenciavam os estados de sono e vigília, alguns praticantes de meditação os questionaram, pois consideravam que a meditação, como um estado diferenciado de vigília, não se enquadraria naqueles parâmetros e deveria ser investigada em particular. Wallace, Benson e Wilson aceitaram o desafio e publicaram, em 1971, um estudo pioneiro em que a meditação é descrita como um estado hipometabólico em vigília, ou seja, com atividade orgânica reduzida como no sono, porém com a preservação da consciência desperta. Dois anos depois, Wallace publicaria outro estudo em que a MT era sugerida como um recurso eficaz no tratamento de hipertensão arterial. Seguiram-se outros estudos em Harvard, investigando níveis hormonais e outras aplicações terapêuticas da meditação e do Yoga, além de outras técnicas corpo-mente, abrindo caminho para a criação do maior centro mundial de estudos nesta área: o Harvard Mind-Body Institute.

A produção científica nessa área crescia então em várias partes do mundo entre os anos de 1970 e 1980, mas a Índia permanecia liderando essa tendência. Nesse período, inúmeros cientistas de Kaivalyadhama fizeram uma notória série de estudos atestando a eficácia do Yoga no tratamento da asma. Outros institutos indianos (em Délhi, Bangalore, Bihar etc.) ou ocidentais (nos Estados Unidos e Europa) foram abrindo novos campos de estudos. Além das investigações biológicas, o Yoga começou a ser estudado também como um fenômeno social, cultural e comportamental, atraindo olhares dos cientistas humanos. A psicologia, classicamente distante dos princípios do Yoga, o trouxe para o centro do debate sobre as perspectivas de realização humana com o desenvolvimento da psicologia transpessoal.


A década do cérebro
Na área das ciências exatas, físicos teóricos começaram a relacionar as teorias da física moderna com os fundamentos filosóficos do Yoga e de outros sistemas orientais próximos, tais como o Zen. Nesse sentido, são notórias as obras de Fritjof Capra e Amit Goswami, ou mesmo a contribuição do indiano radicado no Brasil Harbans Lal Arora.

Os anos de 1990, definidos pelos neurocientistas como “a década do cérebro”, marcaram a evolução de uma nova tendência investigativa: “a neuroteologia”, com muitas publicações procurando levar a uma compreensão de como são os mecanismos neurofisiológicos das experiências meditativas e religiosas. Os efeitos do Yoga começaram a ser avaliados com tecnologias avançadas de escanear o cérebro, tais como a ressonância magnética funcional. O dr. Richard Davidson, um dos maiores expoentes na área, publicou resultados interessantes de uma avaliação feita com um Lama chamado Öser, que em meditação conseguia regular voluntariamente sua atividade encefálica num padrão condizente com estados de profunda serenidade, alegria e entusiasmo.

No início do século 21 o Yoga e a meditação passaram a ser frutos de investigações em áreas tão intrigantes e complexas como a biologia molecular, a psiconeuroimunoendocrinologia e a não localidade quântica, dentre tantas outras que abrem horizontes para uma convergência cada vez maior de saberes. Hoje vivemos um momento fascinante dessa história, em que o conhecimento tradicional construído através de experiências subjetivas se torna cada vez mais bem corroborado por evidências experimentais objetivas, tornando a ciência mais familiar aos yogis e o Yoga mais familiar aos cientistas, levando o mundo inteiro e os próprios estudiosos brasileiros a protagonizar essa história.
Gerson D´Addio da Silva é professor de Yoga da UniFMU, é especializado em fisiologia e dá cursos de formação em várias escolas.

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