O MITO DA MENTE VAZIA



Pedro Kupfer - 24 de Novembro de 2009 
Um cidadão diz para outro: “meu filho está fazendo meditação”. O colega pergunta: “e o que é meditação?” O primeiro responde: “não sei, mas prefiro que ele faça meditação, a que fique sentado sem fazer nada”. Esta piada ilustra aquela visão de que fazer meditação equivale a nada fazer. Ela está baseada num dos muitos mitos que circundam o folclore do Yoga. Muitas vezes vemos comentários sobre os textos tradicionais que nos apresentam versões curiosamente deformadas da maneira em que o Yoga funciona. Uma dessas curiosas distorções diz respeito ao mito da mente vazia e ao que realmente acontece com a mente humana durante a meditação.

Defeito de fábrica?
O pensamento é natural. Não existe mente sem pensamento. Aliás, o corpo da mente é o próprio pensamento, ou melhor, a seqüência de pensamentos ou associações livres que surgem, aparentemente, de maneira aleatória. Não há nada de errado em relação a isso. Supor que a mente deva ser deixada em branco equivale a supor que o psiquismo humano já veio com um defeito de fabricação, que precisa ser consertado.
Não obstante, as evidencias em contrário, há muitos professores de Yoga que insistem em afirmar que é possível manter a mente vazia e que o estado de iluminação só acontece quando a mente é deixada em branco por um longo período. Ora, isso, não coincide com a experiencia real da imensa maioria dos praticantes de meditação, seja dentro do Yoga, seja noutros sistemas igualmente eficientes, como o budismo tibetano, ou o zen budismo.
Se o amigo leitor já tentou parar de pensar, sabe que é virtualmente impossível. Quaisquer esforços nesse sentido irão provocar uma reação mental oposta. Um amigo disse numa ocasião que a experiência de tentar parar o pensamento foi como fazer a tentativa de colocar um gato selvagem numa bolsa fechada.
Cabe lembrar que o próprio Swami Vivekananda, um dos maiores mestres contemporâneos de Yoga, confessou em carta a um discípulo que, depois de décadas e décadas de esforço, apenas conseguiu deixar a mente vazia de pensamentos em apenas duas breves ocasiões. A imensa maioria dos praticantes sequer conseguirá fazer isso uma única vez na vida.
Então, podemos concluir que talvez o problema não esteja na nossa experiência como meditadores, mas na maneira em que definimos as coisas. Ainda, na hipótese de que fosse possível deixar a mente em branco, temos outros problemas: essa proeza, por si só, seria capaz de trazer conhecimento, felicidade ou liberdade?
Não creio. O que acontece depois de um período sem pensamentos, é que a mente volta a pensar e, junto com ela, as preocupações retornam com a mesma força dantes. Portanto, nada é resolvido.

O olho não enxerga a si mesmo.
Mais uma inconsistência que vemos nesta questão da mente em branco é que se isso é feito com o propósito de “ver” o Eu (atma), então, o Eu iria se tornar um objeto que é visto. Os pensamentos não “apagam” o Eu: os pensamentos vêm, o Ser é; os pensamentos vão, o Ser é.
Por outro lado, acontece que os pensamentos não podem ser equiparados ao Ser, e que o Ser não pode, por sua vez, ser reduzido a um pensamento. Quem seria o sujeito que observa o Eu como um mero objeto, nesse caso? O Eu é o sujeito; ele nunca pode ser objeto da percepção, pois ele é, por definição, a testemunha que olha.
Quando eu não sei quem sou, o eventual silêncio da mente não poderá resolver por si só a questão da minha auto-ignorância. Durante o sono profundo, eu não tenho nenhuma atividade mental. No entanto, isso apenas dá um respiro para a minha mente, mas não me traz iluminação.
O Eu não pode enxergar a si mesmo, da mesma maneira que o olho não consegue olhar para si mesmo. Mesmo na hipótese de usarmos um espelho para que o olho olhe para si mesmo, o que o olho enxerga é o reflexo, não o olho real. Similarmente, não há um espelho para o Ser. Como somente há Ser,

Pensar é sofrer?
Outra questão essencial nesta discussão: os pensamentos, por si sós, não produzem sofrimento. A pessoa que acha que deve parar de pensar para parar de sofrer, acredita que pensar é sofrer. No entanto, a origem real do sofrimento é a crença de que somos o pensamento, ou de que ser é pensar.
O sofrimento é causado pela confusão que se estabelece quando, ao pensar, acredito que o conteúdo dos meus pensamentos seja o Ser. A verdade é que os pensamentos acontecem porque o Ser é. Os pensamentos não existem separados do Ser. Assim como o ímã é a causa do campo magnético, da mesma maneira o Ser é a causa do pensamento.
O campo magnético existe por que o ímã existe. A existência do ímã não depende do campo magnético, mas a existência do campo magnético depende da presença do ímã. O pensamento existe por que o Ser existe. Tirando-se o Ser, não pode haver pensamento.
Porém, até mesmo na hipótese de que o sofrimento fosse causado pelo pensar, a solução não estaria em parar de pensar. Parar de pensar indefinidamente, no melhor dos casos, irá me tornar uma espécie de vegetal, incapaz de me comunicar, sentir emoções ou crescer interiormente.
Poderia eu dizer, nesse caso, que estou tendo uma vida plena? Pensamentos equivocados, como achar que somos insignificantes ou indignos de felicidade não se resolvem parando de pensar, mas corrigindo esses pensamentos e substituindo-os por outros que sejam corretos. Será mesmo que eu sou indigno de ter felicidade? Esse tipo de questionamento, com sua resposta adequada, é o de fato que resolve o sofrimento.
Na prática, o ideal é chegar a bons termos com a nossa própria mente. Isso significa fazer, eventualmente, um acordo de paz com ela. Trocando em miúdos, quando sentamos para meditar, damos à nossa mente a liberdade para que ela seja como é, mas nos damos o direito de nos concentrar no tema que escolhemos para aquela meditação.
Eventualmente, a agitação natural do primeiro momento dará lugar a um estado de maior tranqüilidade e estabilidade, no qual nos tornamos capazes de olhar para a mente desde a perspectiva da testemunha, que é o próprio Eu.
É questão de perseverar sem forçar, de maneira compassiva e ao mesmo tempo firme. Portanto, a solução para esta charada não está em tentar manter a mente vazia, mas em perceber o Eu invariável que somos, presente em todos os momentos, antes, durante e depois de cada pensamento. Quando compreendemos que os pensamentos não escondem o Eu, mas que ele permeia todos os conteúdos, o conflito nascido da ideia de deixar a mente em branco, simplesmente desaparece. Namaste!


Publicado originalmente na revista Prana Yoga Journal: www.eyoga.com.br

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